Os exemplos e o bom coração de Ricardo Boechat

Por Redação

A redação do IQ presta uma homenagem ao jornalista Ricardo Boechat, que era o comunicador mais influente do Brasil

No meio de uma tragédia, alguns fatos ficam impressos como se fossem cicatrizes. Em 1994, uma frase marcou a perda do piloto brasileiro Ayrton Senna: “Senna, gostávamos de você, só não sabíamos quanto”. Palavras similares aparecerem aqui e acolá com a morte do jornalista Ricardo Boechat. Para o esportista vencedor e ídolo nacional, esse bem-querer era natural. Mas por que para Boechat, um jornalista?

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Ricardo Boechat em sua última apresentação no Canal Livre (Band/Divulgação)

Porque Boechat conquistava pequenas vitórias diárias, com seu estilo aguerrido e combativo. Fez do rádio uma extensão da voz do ouvinte, com as indignações necessárias sobre os descalabros que acontecem diariamente pelo Brasil. Sempre valorizou a informação que vinha do público – em entrevista ao portal Brazil Journal, Boechat rechaçou o título do jornalismo como testemunha da história. “Quantas vezes você presenciou um assassinato, um avião cair ou um trem bater de frente? Quem viu foi o cara da esquina, que tinha a informação e não sabia o que fazer com isso”, disse, arrematando o assunto com uma frase que descreve bem o seu jeito escrachado e sincero: “(nós, jornalistas) não somos testemunhas de porra nenhuma!”.

Mas fomos, Boechat. Nós, jornalistas, seus ouvintes e admiradores testemunhamos a sua partida, depois de tantas tragédias que se amontoaram desde o início do ano. É difícil perder uma figura tão singular. Além de abrir o microfone da rádio para quem tivesse uma informação para contar, ele chegou a divulgar seu número pessoal no ar. Quer proximidade maior do que essa? Criou empatia e derrubou o mito daquela imagem sisuda do jornalista de terno e gravata que ficava na redação, distante dos problemas do cotidiano.

Boechat demoliu a marretadas a parede que separava o jornalista e o ouvinte. Com isso, transformou-se no ídolo de quem o acompanhava desde as primeiras horas da manhã na rádio “BandNews FM”. O rádio tem essa capacidade – mais do que a TV ou a internet – de aproximar as pessoas. Horas após a confirmação de que Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci eram as duas vítimas do acidente com o helicóptero no fim da manhã de 11 de fevereiro de 2019, começaram a surgir diversos relatos de pessoas que, em algum momento da vida, foram tocadas pelo profissionalismo e pelo enorme coração do jornalista. Todos tinham algo de bom a dizer sobre Boechat: desde um admirador, que batizou uma orquídea com o nome de Boechat e recebeu um e-mail repleto de gratidão, dos muitos taxistas que o ouviam e até alguns que bateram longos papos quando o levavam de um compromisso apressado ao outro, aos ex-colegas de profissão. E os relatos se multiplicaram, provando o potencial cativante do seu profissionalismo e de seu caráter.

Rádio, uma paixão tardia

O rádio foi a ferramenta poderosa para ampliar a voz de Boechat, mas sua estreia no meio foi tardia, aos 53 anos. Para muitos, uma reinvenção. Dizem que, aos 66 anos, partiu no auge da sua forma. Mas a idade é uma aliada do jornalista. A profissão, dizia Boechat, só melhora com a maturidade, porque leva muito tempo para atingir as posições de destaque em uma redação e conquistar o conforto que carreiras planejadas entregam bem antes.

Ele era a prova de suas próprias palavras – tinha um estilo único e não fazia questão de mudar. Filho do diplomata Dalton Boechat e da argentina Mercedes Carrascal, Ricardo Eugênio Boechat foi um jovem inquieto, primeiro sinal de seu estilo combativo e não-convencional. A escola nunca prendeu a sua atenção, e o que ele queria mesmo era trabalhar e começar a ganhar o próprio dinheiro. Assim que terminou o colégio, aos 17 anos, passou a bater nas portas das casas de amigos e de conhecidos para vender livros.

Em uma dessas andanças, o pai de uma amiga, que trabalhava no departamento comercial do extinto jornal “Diário de Notícias” recomendou que ele encontrasse o diretor de redação do jornal. Começou ainda na década de 70 uma carreira como repórter em jornais, que se estendeu até o início dos anos 2000. Além do “Diário de Notícias”, passou pela redação dos jornais “O Estado de S.Paulo”, “Jornal do Brasil”, “O Globo” e “O Dia”. Também compartilhava sua opinião em entradas nos telejornais da Globo “Bom Dia Brasil” e “Jornal da Globo”. Tornou-se, então, um dos maiores colunistas políticos do País.

Depois de uma breve passagem pelo SBT, a Band tornou-se sua nova casa. Em 2006, ocupou o cargo diretor de jornalismo da emissora no Rio e posteriormente mudou-se para São Paulo para ancorar o “Jornal da Band”. Além da bancada do telejornal, Boechat era a principal voz do jornal matinal da “BandNews FM”. Suas opiniões, sempre embaladas pelo sotaque carioca, um palavrão que escapava aqui e ali e o jeito sincero não só deram a ele a fama de falastrão, como também capturavam a audiência.

Apesar de cumprir de forma prazerosa uma rotina exaustiva, de assumir a bancada de manhã e à noite, fazer palestras e eventos entre um e outro e ser pai de seis filhos e marido o tempo todo, ultimamente Boechat se dizia cansado. O jornalista confessava que, após um episódio de depressão em 2015, nunca mais fora a mesma pessoa. Ao revelar ter superado essa doença que atinge milhões de pessoas e não escolhe classe social, ele ajudou a desmistificar esse sofrimento.

Toca o barco

Muitos colegas relatavam que Boechat queria estabelecer um prazo para a sua aposentadoria. Contavam a história, quase em tom de anedota, de que Boechat tinha comprado um sapato novo e dizia que quando a sola se desgastasse era a hora de sair de cena. Gastar sola de sapato é uma expressão usada no jornalismo que traduz a necessidade de andar muito para conseguir a informação mais precisa. Por mais que tenha andado, a sola de Boechat ainda estava nova.

Boechat não se eximia de emitir opiniões assertivas e nada acanhadas sobre o que fosse. Em seu último programa, na mesma manhã do acidente, falava da impunidade que cercava os episódios do estouro da barragem de Brumadinho e da morte dos jovens atletas no alojamento do Flamengo. Naquele, e em tantos outros momentos, ele dava forma aos sentimentos da grande maioria dos brasileiros. Ele era um dos poucos a ser ouvido pelos dois lados de um Brasil polarizado entre direita e esquerda – talvez porque poucas coisas escaparam de sua língua afiada e sem papas. Em um momento em que o jornalismo – e o jornalista – é tão questionado, a prematura partida de Boechat mostra que existe um caminho para a profissão e prova a sua importância para um Brasil melhor.

Boechat criou uma linguagem própria, autêntica e inconfundível. Num País de memória seletiva, que insiste em esquecer o passado, vamos tocar o barco, Boechat – como você repetia diariamente -, porque a sua voz e o seu legado nos lembrarão do amanhã, mas sem deixar para trás o que passou.

(Texto assinado por Márcio Kroehn, Bianca Alvarenga, Fernanda Santos, Isabela Borrelli, Maria Teresa Lazarini, Diana Ribeiro, Emily Silva, Bruno Freitas e Breno França)